Por Erika Farias – EPSJV/Fiocruz
Estudos sobre história e cultura afro-brasileiras têm evidenciado o fato de que a sociedade ocidental foi educada a partir de uma visão eurocêntrica de mundo, em que os feitos dos colonizadores foram ensinados, geração após geração, como conquistas e atos heroicos. Por este ponto de vista, criou-se uma ideia do homem branco como vencedor, a força motriz de uma expansão capitalista que, por séculos, sequestrou, escravizou e aniquilou povos inteiros. Mais de 130 anos após a assinatura da Lei Áurea, declaração ‘formal’ que determinou a abolição da escravatura em solo brasileiro – sem que houvesse indenizações ou posteriores políticas de integração aos recém libertos – hoje, são notórios e crescentes o ativismo e o movimento social negro, bem como os debates acerca de consequências pessoais, sociais e econômicas dos quase 400 anos de escravização do povo africano e afrodescendente. Apesar do avanço das discussões referentes à reparação histórica de pretos e pardos, um aspecto desta engrenagem permanece em segundo plano: a invisibilização do branco escravizador. É neste campo crítico, de estudos referentes aos privilégios da pessoa branca em sociedades estruturadas pelo racismo, que surge o conceito de ‘branquitude’.
“Quem é que conta nossa história? Geralmente ouvimos a história dos vencedores, colocados como catequizadores ou civilizadores”, argumenta o sociólogo e professor adjunto na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab) Lourenço Cardoso. E completa: “E quando falamos de escravidão, sim, o escravizador branco está morto, assim como os escravizados. A questão é a opressão no presente que se dá pelo racismo. Olhar o passado é necessário para que a gente busque compensações econômicas. Isso é algo importante e tangível, por causa das vantagens econômicas que os brancos tiveram e que ainda têm nos dias de hoje. Jogar a questão da escravização para o passado deixa confortável os opressores do presente”, opina Cardoso.
Há diferentes conceituações para o termo branquitude, mas o argumento central é consenso entre autores. “A branquitude é uma racialidade construída socio-historicamente como uma ficção de superioridade, que produz e legitima a violência racial contra grupos sociais não-brancos e beneficia os brancos dando a eles privilégios materiais e simbólicos”, explica a professora do departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Lia Vainer Schucman. A professora adjunta e coordenadora de Políticas Afirmativas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Ionara Magalhães, complementa: “A branquitude se revela como um sistema político do pensamento social, um fenômeno ideológico pautado na colonização, racialização do outro e negação do racismo. Ela se fundamenta na compreensão do branco enquanto sujeito racializável, alvo de análise e pesquisa”, explica Magalhães.
Foi a partir da década de 1990 que os estudos sobre raça começaram a mudar de foco, deixando de priorizar apenas as pessoas negras, ainda nos Estados Unidos. Em seu livro ‘Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: Branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo’ Lia Schucman afirma que esse movimento se deu quando “os olhares acadêmicos das ciências sociais e humanas se deslocaram dos ‘outros’ racializados para o centro sobre o qual foi construída a noção de raça, ou seja, para os brancos”.
Racializar o branco é fundamental para a discussão sobre branquitude, já que desde o século 16, os racializados, ou seja, as pessoas vistas como uma ‘raça diferente’ eram as não-brancas. “O mundo é todo feito para o branco se sentir representado como se ele fosse o padrão universal de humanidade. Como se quem tivesse raça fosse o negro ou o indígena e os brancos fossem genéricos. Isso é um privilégio muito grande”, afirma Schucman. Lourenço Cardoso explica que o conceito de branquitude tensiona o que é ser branco. “Branco é uma invenção de si no momento colonial. Eu me invento na medida em que eu invento o outro”, reflete o pesquisador. “É uma identidade de contraste com uma hierarquia, uma identidade que se faz: eu coexisto com o outro, eu somente existo a partir da sua existência. Essa é a lógica do pensamento ocidental”, diz.
Em seu livro ‘Pequeno Manual Antirracista’, a filósofa brasileira Djamila Ribeiro reforça: “Pessoas brancas não costumam pensar o que significa pertencer a esse grupo, pois o debate racial é sempre focado em negritude. (…) Portanto, uma pessoa branca deve pensar seu lugar de modo que entenda os privilégios que acompanham sua cor. Isso é importante para que privilégios não sejam naturalizados ou considerados apenas esforço próprio”, aponta Ribeiro.
Negritude x Branquitude
No Brasil, de acordo com dados de 2021 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 56,1% da população se autodeclara negra, entre pretos e pardos. Já segundo a Pesquisa PoderData, de 2020, 81% dos brasileiros disseram haver preconceito contra negros no Brasil por causa da cor da pele, enquanto apenas 34% afirmaram ter preconceito contra os negros. Os números não batem. “Não existe um país com racismo estrutural sem racistas, é impossível. A máquina não gira sozinha. Só existe esse racismo estrutural porque os brancos se beneficiam. Quando eles vão selecionar alguém para trabalhar e acham que o branco é mais competente; ou quando vão selecionar alguém para fazer a propaganda, o marketing da empresa, e acham que a pessoa branca é mais bonita”, argumenta Schucman.
É na crítica a essa imposição do negro como ‘o outro’, logo, o diferente que nasce o conceito de negritude. Ele surge em meados de 1930, como um pensamento dos negros da diáspora africana, principalmente franceses, que ressignificam a ideia de ser negro. “Negro é inteligente, é bonito. Com a negritude você reinventa o que é ser negro. É o negro inventando a si mesmo ou reinventando aquilo que foi inventado pelo branco. Já o conceito de branquitude está questionando o branco. A branquitude está para além do corpo, tem a ver com economia, com representação”, explica Cardoso.
O mito da democracia racial e a manutenção dos privilégios brancos
No livro ‘Casa Grande e Senzala’, de 1933, Gilberto Freyre ajudou a propagar a ideia de democracia racial, segundo a qual a miscigenação ocorrida no solo brasileiro havia criado uma realidade na qual as relações sociais eram pautadas pela igualdade entre indivíduos de diferentes cores e etnias, onde as diferenças que se apresentam são ‘apenas’ as de classe. Ao se acreditar nessa ideia, o racismo perde seu papel estrutural e estruturante das relações, e faz com que o discurso meritocrático encontre embasamento teórico. Para Schucman, só é possível reconhecer mérito quando as oportunidades foram, de fato, iguais. “A denúncia do privilégio mostra que não é o mérito que faz com que os brancos cheguem aonde chegaram. E sim, o próprio privilégio. A ideia de mérito só funciona junto com essa ideologia da democracia racial. Esta é uma constatação para que se possa criar oportunidades iguais e políticas públicas de igualdade racial”, aponta. Ionara Magalhães também reflete sobre o risco de uma sociedade de memória seletiva, fundamentada na premissa de democracia racial. “O fato de o branco não reconhecer, não refletir sobre a sua identidade racial, sobre sua participação atroz na produção histórica das mazelas sociais e perpetuação das iniquidades tende a provocar uma abstenção das responsabilidades com relação aos privilégios raciais que detém”, aponta.
Para pesquisadores do tema, não responder pela raça ou por um grupo é prerrogativa da pessoa branca, já que pelo fato de a pessoa fazer parte de um grupo racializado, ela é sempre obrigada a responder por um coletivo, enquanto a pessoa branca é vista como indivíduo. “Coisas que a gente nem imagina, como, por exemplo, poder sair de casa sem documento, poder entrar em uma loja, comprar algo e não pensar que você tem que guardar a notinha para provar que você comprou. Sair de chinelo, bermuda, sem camiseta, e não acharem que você é um ladrão. A pessoa branca liga a televisão e se sente representada o tempo todo pelo ator ou atriz principal”, revela Schucman.
Mas, afinal: quem é branco e quem é negro?
Brancura é um conceito complexo, afirma Ionara Magalhães. “A definição do branco e do negro são produções histórico-político-culturais que extrapolam a perspectiva biologizante. Ser socialmente branco no Brasil corresponde a exercer uma função social que lhe confere autoridade, deferência, um respeito automático que possibilita mobilidade social. O negro, portanto, é o outro. O negro é o não-branco”, afirma Magalhães. Aprofundando ainda mais a discussão para a vertente histórica, quem é branco e quem é negro passa a depender ainda de diferentes variáveis e subjetividades. Lourenço Cardoso fala sobre o termo branco não-branco em seu livro ‘Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil’, em que aponta detalhes sobre o processo de formação do Brasil. “O português que colonizou o africano, antes foi colonizado pelo próprio africano. Ele já tem uma mistura cultural e biológica com o africano. Quando vem para o Brasil, com o tráfico dos escravizados e com a questão da mestiçagem fruto do estupro, é feita outra mestiçagem. Então, o branco brasileiro é sempre o branco não-branco comparado a outros brancos, como os franceses ou ingleses. Esse não-branco se faz sempre por comparação”, destaca o historiador.
Luta antirracista
Djamila Ribeiro reforça em ‘Pequeno Manual Antirracista’ que “perceber-se é que permite situar nossas responsabilidades diante de injustiças contra grupos sociais vulneráveis. Pessoas brancas, por exemplo, devem questionar por que em um restaurante, muitas vezes as únicas pessoas negras estão servindo mesas”. Segundo a Síntese de Indicadores Sociais de 2020, divulgada pelo IBGE, pretos e pardos com curso universitário ganham 31% menos que brancos. Outra pesquisa, intitulada ‘Racismo no Brasil’, divulgada em maio de 2021 pelo Instituto Locomotiva, aponta que apenas dois de cada dez brasileiros afirmam ter um chefe negro, enquanto 73% dos brasileiros afirmam possuir chefes brancos e 5% amarelos.
Apesar do aprendizado sobre os privilégios, Schucman frisa que o letramento racial crítico, ou de forma bastante resumida, uma compreensão crítica acerca do tema, não muda nada sem que se use essas informações como uma mola para a luta antirracista.
“Os brancos sabem que têm privilégios. Não é a alienação sobre saber o que é privilégio que os fazem agir assim, é exatamente por não terem uma conduta ética moral que faça com que as pessoas se sintam responsabilizadas pela manutenção do racismo estrutural. E a verdade é que não tem como mudar a estrutura sem os indivíduos mudarem as instituições em que eles estão. As instituições são feitas de indivíduos, elas não se movem sozinhas. Não é sobre a reflexão, é sobre como esse indivíduo pode criar normas, regras e leis institucionais para garantir equidade, igualdade. Para que aquela mudança seja permanente”.
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